sábado, 1 de março de 2014

Filhinhos de papai ou a burguesia ainda fede

Cazuza cantou que a "burguesia fede". Naquela época, recordo-me de ter ouvido críticas tais como: "um absurdo, o maior burguesinho falando da burguesia", "dizer que a burguesia fede, sendo filho de quem é, é mole" e outras nesse sentido. Isso significa por acaso que a burguesia não pode ser criticada por burgueses que conseguem enxergar todas as suas mazelas? Por burgueses dispostos a tentar mudar o cenário mesmo que provenham deste mesmo sistema cruel e absurdo?
Rememoro os ataques feitos a Cazuza porque é muito comum ouvir, por exemplo, que os Black Blocs e/ou os manifestantes que ocupam as ruas desde junho são todos filhinhos de papai, isto é, não merecem ser levados a sério. Em primeiro lugar, tal afirmação denota um amplo desconhecimento dos movimentos populares e de quem deles faz parte. Mas suponhamos que, sim, sejamos todos filhinhos de papai ou burguesinhos sem a mínima capacidade reflexiva sobre nossa política e seus rumos distorcidos. Isso nos faz incapazes de reivindicar melhorias em setores como saúde, educação, transportes, segurança, moradia, saneamento básico e que também sejamos contra a Copa? Mesmo que tais pautas não sejam, a priori, um problema para a burguesia, sentada em seu berço esplêndido? Que bom que há tantos "filhinhos de papai" descontentes com a desigualdade social e atentos aos desmandos de nossos governantes, reivindicando melhorias na qualidade de vida para os não burgueses.
Tais críticas, a meu ver, são uma forma da própria burguesia - ou ao menos de uma parte conservadora e reacionária - perpetuar o status quo, desqualificando os atores sociais engajados nas lutas. Explico melhor: as reivindicações não poderiam surgir de dentro da própria burguesia justamente por serem filhinhos de papai, isto é, pessoas alienadas que nunca precisaram trabalhar, pegar ônibus e trens lotados etc. Assim, ao adjetivar os manifestantes com essa alcunha, busca-se simplesmente despolitizar as manifestações e enfraquecê-la. O que os conservadores diriam, nas entrelinhas, é que qualquer tentativa de mudança social deveria partir das classes menos favorecidas, estas sim carentes das pautas levantadas nas ruas. Mas é aí que entra, na minha opinião, a crueldade de nosso sistema, porque do mesmo modo que a pecha de "filhinhos de papai" não leva a sério os gritos das passeatas, se fossem os moradores de comunidades, por exemplo, a entoar os mesmos gritos, prontamente se diria que não passam de analfabetos políticos que estão a serviço do tráfico. Ou que deveriam trabalhar mais ao invés de interditarem as vias da cidade reclamando algo que nunca lhes pertenceu e que assim é. Ou, ainda, que deveriam ter estudado e que agora não adianta reclamar. Mais ainda: a repressão policial seria mais ostensiva e ninguém reclamaria o sumiço de tantos Amarildos, como, aliás, acontece diariamente desde sempre.
Parece que a palavra de ordem é que não haja desordem, que ninguém ouse interferir no modus operandi burguês para que este siga inclemente em uma cidade excludente, onde pobres e negros se restrinjam às favelas e à periferia e não tenham a audácia de querer acesso a hospitais, escolas, lazer, shopping centers etc. Que os pobres e negros continuem a ser mão de obra barata para o conforto da classe média acostumada ao seu padrão de vida.
O que as ruas vêm dizendo é que o poder é do povo. Desse modo, é para o povo que as ações governamentais deveriam ser dirigidas, diminuindo as diferenças de classes. Sou uma dessas vozes nas ruas, e sou filho da classe média. Isso me descredencia? A propósito, não sou tolo o suficiente para achar que as manifestações são compostas só por filhinhos de papai. Quem está nas ruas sabe a diversidade das vozes que se articulam em prol de uma coletividade. As mudanças podem até não acontecer, mas continuemos a gritar, sejamos ricos, pobres, brancos, negros, burgueses, proletários, afinal, o poder é do povo. E ignoremos os rótulos desqualificadores dados por senhores conservadores e, sobretudo, ignorantes do que de fato ocorre.
Para finalizar estas concisas reflexões, não seria estranho que a mídia hegemônica, que atende aos interesses dominantes, dia após dia deturpe as informações que chegam ao público de modo a criminalizar as manifestações, orquestradas por vândalos, e que os midiativistas sejam ostensivamente obstruídos de levar uma versão menos comprometida e mais fidedigna com o que ocorre nas ruas? Para que haja uma mudança substancial em nossa sociedade, faz-se imprescindível a mudança do sistema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário